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Palavra de Bailarina

Para além de dançar o Mundo, gosto de escrevê-lo

Seg | 20.10.14

Geração Instantânea

Uma das coisas que mais me preocupa e atormenta enquanto Professora de Dança de crianças/jovens é a mentalidade das mesmas perante o esforço e dedicação que se tem de aplicar a qualquer que seja a modalidade, para bem suceder. 

Já não é a primeira nem a segunda vez que me deparo com alunos que, após três ou quatro aulas, desmotivam. A razão?

"É uma seca. Eu quero dançar coisas mais fixes/rápidas/difíceis" (já ouvi as três versões).

Quando me iniciei a dar aulas, tive um ou dois casos assim e fiquei preocupada. "Estarei eu a falhar? Não estarão as coreografias adaptadas a esta faixa etária?"

Apercebi-me então que as mesmas crianças/jovens que me diziam querer exercícios e coreografias mais complexas não executavam sequer satisfatoriamente as básicas. E no entanto lá andavam elas, todas contentes, a fazer NADA e a aprender ainda menos.

Voltei então ao básico. Apanhei com alguns "revirar de olhos" e alguns "assopranços" de aborrecimento por parte dos alunos que se achavam já capazes de mais. Tive então de lhes (voltar a) explicar que as aulas de dança funcionavam como um jogo de computador: Para passar ao nível seguinte, era preciso dominar primeiro o anterior.

"Mas isto é uma seca."

Tive de ser inflexível. Se avançasse para um maior grau de complexidade sem antes garantir que dominavam o básico, então não estaria a ensinar Dança, mas sim a entreter meninos nas horas vagas.

Durante o processo de captação das bases, não deixei de os motivar e tentei inspirá-los ao máximo. Mostrei vídeos, aconselhei filmes, fiz demonstrações de coreografías mais avançadas...tudo com o propósito de lhes explicar que, um dia, poderiam ser eles a fazê-las. Fi-los ver que, para terem aquele nível, tinham de merecer... Tinham de me provar que o esforço, a dedicação e a sua atenção valíam a pena para se superarem. Tive de lhes provar que o básico seria tão ou mais precioso do que o que viria a seguir.

Nessa turma, o processo foi longo. Apenas uma "abandonou o barco". Consegui mantê-los focados. Mesmo nos dias mais difíceis, consegui arranjar motivação para lhes transmitir. E no final do ano, todos sentimos que a missão havía sido cumprida, ainda que a tarefa de se tornarem os melhores estava longe de terminar. Era (e é) um processo para a vida e aplicável a tudo o que fizerem. Eles acabaram por compreender.

Este ano tenho mais dois ou três casos destes. Alunos desmotivados por acharem que estão preparados para grandes voos, sem sequer saberem abrir as asas. E eu começo a aperceber-me que estamos perante uma geração que acha que consegue o que quer à distância de um "click", sem qualquer esforço envolvido. 

A culpa? Do Mundo que os rodeia... Da sociedade em que estão inseridos:

- Pais que os inscrevem nas modalidades e pensam que, assim que pagam a primeira mensalidade, têm perante eles filhos transformados em estrelas, como que por milagre;

- "Reality shows" que nada têm de real, como a "Casa dos Segredos", em que se transmite que estar fechado numa casa sem fazer népia durante uns meses e gerar algumas polémicas é a porta mais direta para a fama, para serem cantores, atores, bailarinos e gente digna de capas de revista. São desafinados? Desajeitados? Não têm qualquer tipo de formação? Não faz mal! A Casa dos Segredos justifica qualquer ascenção; 

- "Talent Shows", como Ìdolos, The Voice, Aqui Há Talento, e coisas que tais, que de facto entretêm naquelas horas de poucos afazeres, mas que apenas se focam em supostos talentos saídos do nada. Esquecem-se de dar relevância a todo o trabalho que está por trás, a toda a formação, a todos os ensaios intensivos, a todas as perdas que vieram antes das conquistas. Focam-se em inspirar pelas vozes e desprezam o caminho que estas percorreram. Até o "Dança com as Estrelas" é interpretado da seguinte forma: "Ela aprendeu isto numa semana? Uau, brutal! Afinal é fácil...e rápido!" Ainda que mostrem os ensaios, tentam sempre mostrar o seu lado mais soft;

- Outros responsáveis  pela atitude das crianças de hoje em dia perante a ilusão do "sucesso instantâneo" que podemos evocar, são aqueles que (eu) considero Os Maus Professores de Dança. Aqueles que, para terem e manterem alunos, convencem os mesmos e os seus respetivos pais de que estão perante prodígios que apenas precisam de ajuda para afinar as suas capacidades et voilá! Estão prontos a ascender. Professores que, na minha opinião, não sabem o significado de evolução e de ética, e que enchem a cabeça das pessoas com promessas que não passarão de ilusões se não houver trabalho para tal acontecer.

...

Podia ficar aqui a enumerar mais mil e uma razões que tornam os miúdos de hoje em dia naquilo que chamo de "Geração Instantânea"... mas nunca mais sairía daqui e começar-me-ia a afastar do tema principal: A minha preocupação perante a sua perspetiva de "aula de dança".

O suor, o esforço, o foco, a paixão, a vontade de ser melhor... nada disto faz parte do cenário.

Mas então, o que faz afinal?

Os resultados. Apenas os resultados. Os resultados que eles acham que terão, apenas por aparecerem nas aulas. Aqueles resultados que NÃO terão se não tomarem uma atitude por eles próprios. Aqueles resultados que NÃO verão e que os fará desistir para se irem iludir para outra modalidade/hobbie qualquer.

 As aulas de Dança devem ser divertidas, devem servir para fazer novos amigos, para relaxar de um dia de escola... mas devem também, a meu ver, ter regras estabelecidas e ter como palavras-chave "Disciplina, preserverança, esforço" e afins. Nós, professores, queremos criar bailarinos? Para mim, isso é secundário, quando falamos em ensinar crianças a dançar. Eu prefiro ter "melhores cidadãos do futuro". Menos instantâneos, mais informados, mais focados, mais determinados. Mas receio que estejamos perante uma mudança gravíssima de mentalidades, que já nos fugiu do controlo e não tem volta a dar.

Espero estar enganada. Vou fazendo por isso, começando pelo básico.

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