Ser professor que pensa fora da caixa (um desabafo com verdade)
Há medida que vamos crescendo e, por acaso, nos tornamos professores (seja do ensino regular, seja como no meu específico caso, de dança) vamos fazendo involuntariamente uma retrospetiva de como foram (ou quem foram) os nossos professores no passado. Há medida que nos vão ensinando sobre pedagogias específicas, que vamos aprendendo um pouco mais de psicologia ou interiorizando estratégias de ensino-aprendizagem, começamos inevitavelmente a pensar “quem era bom professor e quem era mau” quando éramos nós os alunos. Mas quando nos deparamos de facto com a prática no terreno, percebemos que as coisas não são assim tão preto no branco como nos foi sintetizado: muitas das vezes as nossas estratégias vão de encontro à pedadogia com que mais nos identificamos mas, outras vezes, e dependendo das turmas que temos, encontramos um equilíbrio entre o que achamos o correto e aquilo que nunca nos imaginámos a fazer. E isso começa por ser assustador, porque é um jogo totalmente “tentativa-erro”, mas pode transformar-se num trabalho muito nosso e revelador de nós próprios enquanto seres conscientes que evoluem com o tempo.
Quando comecei a dar aulas (mesmo, mesmo no início) tinha o grande problema de não confiar. Não confiar em mim e, por consequência, nos outros. E portanto não confiava nos meus alunos para fazerem demonstrações, uma vez que não confiava que o meu trabalho fosse bom o suficiente para ser exposto por eles. Esse medo passou. Obriguei-me a dar saltos de fé e a confiar que iriam transmitir ao público o que lhes tinha transmitido. A partir do momento em que esse “bicho papão” foi enfrentado, as coisas começaram a fluir. Demonstrações? Espetáculos? Siga.
Depois, com o tempo e com a experiência, comecei a questionar-me a mim mesma sobre o propósito do meu trabalho. Ensiná-los a dançar, fazerem demonstrações e pronto? Não me chegaria. Não podia ser só isso. E foi então que, ao começar a dar aulas de forma mais descontraída e segura, me apercebi que precisava também de contribuir para formar cidadãos mais conscientes. Não sou “a escola”, mas também sou “a professora”. Ensino dança, mas esse ensino tem de ter um paralelismo com as aprendizagens sociais, os valores e, se não for pedir muito, com um conceito muito vincado de paixão, criatividade e resiliência.
O meu trabalho começa por aí. Por fomentar o respeito, o espírito de equipa e a entreajuda dentro dos grupos. Começa por fazê-los ver que sonhar não faz mal mesmo que os sonhos pareçam os mais disparatados, mas que só com esforço, com humildade, dedicação, visão e fé é que conseguimos chegar a algum lado. O meu trabalho passa também por inspirar, transmitir uma paixão que é minha desde que me lembro, mas também passa por amenizar egos quando estes se elevam demasiado e consciencializar os meus alunos da importância de cuidarem do seu corpo para que este funcione bem durante o maior número de anos possível (porque felizmente ou infelizmente, ainda não somos de ferro).
E assim, o meu trabalho passa também por métodos menos usuais de ensino. Felizmente, são cada vez mais aplicados, mas ainda são daqueles com reações parecidas às de quem prova sushi para primeira vez: ou se ama ou se odeia. E no caso dos que odeiam, é triste saber que nos vêm como preguiçosos, maus professores ou desmotivados, quando é exatamente ao contrário. Ainda há muito caminho a percorrer para toda a gente verificar que há aprendizagens que se adquirem melhor mediadas pelos próprios alunos com orientação do professor.
Quando deixamos os alunos mediarem o conhecimento com a nossa orientação em vez de sermos aqueles que dizem "é assim, faz assado" eles já estranham. A formatação que lhes é imposta nas suas outras realidades é reta, sem curvas nem desvios. Já se habituaram a ficar em segundo plano para ouvir ou, no caso da dança, reproduzir o que o professor faz. Mas e se fazemos diferente? E se optamos por outras formas de ensino mais dinâmicas, mais relacionais, mais COM eles? Isso faz de nós piores professores? Faz de nós os “mauzinhos” que os obriga a pensarem demasiado? Faz de nós os despreocupados que os deixa à própria mercê?
Peço-vos que parem um pouco e observem as nossas gerações futuras de adultos. São crianças e jovens que estão presos num ritmo alucinante e automatizado, miúdos que levam um choque quando, por exemplo, a professora de dança lhes pede para fazerem uma coreografia sem ela e “ainda por cima” (como eles muitas vezes desabafam) em grupo. São alunos que nos criticam baixinho por os fazermos rever coreografias em conjunto e a ensinarem a quem faltou a aula passada, sabendo que a professora naquele momento está ali apenas para tirar as dúvidas necessárias, e que referem baixinho (como se nós não ouvíssemos tudo) que "não são o professor"
Pois não, não são. Mas são companheiros, amigos e, principalmente humanos. Indivíduos conscientes capazes de reter informação, revê-la e transmiti-la a outros à sua maneira. Maneira essa que, sendo mais próxima da realidade do indivíduo que estão a ensinar, torna a aprendizagem mais rápida para ambos. Ao ensinarmos, também aprendemos sempre mais qualquer coisa.
Sinto nas crianças e jovens de hoje em dia demasiada ação e muita falta de noção da mesma. Contra mim falo que sou mulher de vários ofícios, mas esta malta tem muita coisa a acontecer ao mesmo tempo sem consciência plena do porquê de estarem ali, do que os move, do que os apaixona ou até mesmo, neste caso, do porquê do professor estar a ensinar de maneira diferente. Há que os lembrar que é possível VIVEREM o conhecimento que adquirem, seja qual for o contexto em que o processo é realizado e que esse processo ainda é melhor quando feito de forma humilde, em grupo e com respeito pelo próximo.
Estarei errada? Talvez este seja o desabafo mais aleatório deste blog. Mas era necessário ser feito. Continuarei a dizer que, antes de formar bailarinos, quero contribuir para a formação dos cidadãos do futuro. E esta é uma das minhas estratégias, que fique aqui registada. Isso não fará de mim melhor ou pior professora. Fará de mim professora-com-consciência-de-determinadas-falhas-que-podem-ser-resolvidas-com-paixão-pelo-que-faço.
Posso ser considerada como alguém que pensa fora da caixa. Não me importo porque é verdade. Essa caixa que é o processo ensino-aprendizagem em Portugal neste momento é muito pequenina e nem eu, nem as minhas paixões nem as minhas visões cabem lá dentro. Gosto de transbordar.